Pecuária,
a maior contribuição
A influência espanhola se fez sentir no Rio Grande do Sul, desde a sua
formação. Pode-se mesmo falar que, sem a participação espanhola, a pecuária -
que seria a base da economia gaúcha durante o século XIX e início do XX - não
existiria com a importância que tem. Mas não é só isso: no linguajar da
fronteira, nas influências culturais, países de língua hispânica desempenharam
um importante papel no nosso século.
Não poderia ser de outra forma. Afinal, o Rio Grande representou a principal
zona de contato - e conflito - com os vizinhos espanhóis. Atualmente, metade de
nossos limites territoriais se encontra com nações de origem hispânica: ao sul
está o Uruguai, ao oeste a Argentina. No século XVII todo o atual estado estava
em mãos espanholas. No século seguinte os portugueses conquistaram algumas
áreas, e boa parte do território gaúcho voltou a ficar em mãos espanholas -
suas tropas invadiram o sul do estado, ocupando a cidade de Rio Grande por 13
anos. Já no início do século XIX a situação foi inversa: foi o Brasil que
ocupou a área do Uruguai, incorporando-o ao seu território como Província
Cisplatina.
Mas a maior contribuição espanhola, em termos econômicos, pode ser considerada
a introdução de bovinos no Rio Grande do Sul. Durante o século XVII, quando
formaram suas reduções com os índios guaranis, os jesuítas se preocuparam em
dispor de grandes rebanhos de gado para garantir a alimentação de seus
tutelados. Graças a isso e a ameaças de vinganças divinas é que eles mantiveram
os índios reunidos. Quando os jesuítas foram expulsos, o gado ficou e se
proliferou, tornando-se uma atração para portugueses e espanhóis. Os paulistas
das bandeiras e os lagunenses que primeiro penetraram em território gaúcho o
faziam em busca de gado.
Também em termos culturais a influência espanhola se fez presente, em especial
na zona da Campanha. Ali, vivendo situações parecidas e com atividades
econômicas idênticas, os gaúchos dos dois lados desenvolveram vestimentas
extremamente semelhantes. Também a alimentação é bastante parecida: a carne é a
base alimentar de todo o pampa.
Na região de Santa Vitória do Palmar, a influência platina se fez sentir até
bem entrado o século XX. Isolados do resto do país e do estado antes da pavimentação
da BR-471, que liga o município à cidade de Rio Grande, os moradores
compartilhavam muito mais das atividades do Uruguai do que das do Brasil. Era
com times uruguaios que se jogava futebol, os jornais e revistas vinham daquele
países, se escutavam as rádios de lá. E isto se justificava: afinal a cidade
uruguaia mais próxima, Castilhos, está a apenas 70 quilômetros, enquanto que
Rio Grande fica a 238 quilômetros.
A proximidade trouxe influências linguísticas, com vários termos se
"acastelhanando". Essa situação também ocorreu em outros pontos da
fronteira, onde a mescla de termos castelhanos e portugueses no linguajar
cotidiano é freqüente. E, se houve influência na linguagem, também houve na
arte: a poesia campeira, com seus poemas gauchescos, é comum aos três países do
Cone Sul.
Costumes
e hábitos da fronteira
No Rio Grande do Sul não existe uma cidade que possa ser considerada espanhola.
Nem mesmo um bairro. E, se houver, serão poucas as famílias que, em casa,
somente falam espanhol. Ao contrário dos esforços feitos em outras etnias, não
existe um trabalho de recuperação e preservação das velhas tradições,
procurando mantê-las vivas no dia-a-dia das pessoas.
Para um estado que, no passado, teve suas terras pertencentes à Coroa da
Espanha, restou, portanto, muito pouca coisa intacta. Mas muita coisa, da
indumentária às formas de expressão que ainda prevalecem na fronteira,
permaneceu com alterações - mesclada com os costumes dos portugueses que
avançaram "a ferro e fogo" para o sul, essa cultura espanhola
resultou em algo novo: no homem gaúcho, com uma cultura própria.
O gaúcho, segundo historiadores da fronteira, "é mais espanhol que
português". Em Santa Vitória do Palmar, por exemplo, alguns termos e
formas de expressão deixam isso muito claro. Situada nos antigos Campos
Neutrais (que não pertenceriam nem a Portugal e nem à Espanha) estabelecidos
pelo Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, Santa Vitória não conhece o pássaro
joão-de-barro por esse nome mas como ornero. O pardal é corrião.
E não se diz "não o viste", mas não lo viste.
Algo semelhante acontece em Livramento, como, de resto, em toda a fronteira com
o Uruguai. Ali, quando se vai a uma loja comprar um ferro elétrico pede-se uma plancha.
Esse verdadeiro dialeto da fronteira é tão forte, que as pessoas, mesmo que se
policiem, acabam utilizando termos regionais em sua comunicação habitual. Mas,
é claro, isso não se trata de espanhol.
O que é uma autêntica tradição espanhola é o velho costume que vem se mantendo
no tempo, de empinar pandorgas (papagaios) na sexta-feira santa. As
pessoas saem cedo de casa, com um farnel na mão e a pandorga pendurada nas
costas, e seguem para os cerros da região, longe dos fios que fazem a
transmissão de energia, para dedicar-se ao esporte.
Trata-se de um costume muito antigo. A prova de que se trata de uma tradição
espanhola foi obtida em Valencia, na Espanha, graças a pesquisa de
historiadores da região, segundo a qual o costume foi levado a Livramento pelos
espanhóis que chegaram à cidade através do porto de Montevidéu em algum momento
do século passado.
Como em território uruguaio a ferrovia ia até Rivera (onde foi inaugurada em
1892), espanhóis e italianos chegavam em grandes levas ao Brasil por esse
caminho. Quando D. Pedro II visitou Livramento em 1865, o Conde D'Eu registrou
em diário que "de duas mil almas, o elemento brasileiro não representa
metade". Dentre os europeus, informou ele, predominavam os italianos. Os
próprios registros da Associação Comercial da cidade indicam que, no final do
século passado, a maior parte dos comerciantes locais era composta por
espanhóis e italianos.
A
influência dos anarquistas
Junto com eles, porém, chegou outro tipo de espanhóis - os anarquistas, que
fugiam de seu país. Estes não só consolidaram um numeroso grupo na cidade,
como, ali, patrocinaram o que deve ter sido uma das primeiras greves do Rio
Grande do Sul, a dos funcionários do Armour, nas primeiras décadas deste
século. Existem fotografias de cartazes escritos em espanhol durante a greve
dos trabalhadores do frigorífico, que foi fundado na cidade em 1917 e ainda
opera, mas como uma unidade de outro grupo empresarial.
Não existem mais anarquistas em Livramento, mas os descendentes de espanhóis
ainda são ativos, reunindo-se na Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos. Seus
descendentes continuam presentes no comércio, agora também engrossado por
uruguaios voltados para o fornecimento de mercadorias para a população de seu
país, que realiza parte de suas compras no lado brasileiro.
Esta, aliás, é uma característica de toda a fronteira. Gaúchos se abastecem no
Uruguai ou Argentina e vice-versa. Com isto é comum existirem comerciantes
brasileiros no lado uruguaio ou argentino e comerciantes uruguaios ou
argentinos no lado brasileiro. Em Jaguarão, por exemplo, se acredita que 20% do
comércio está em mãos de uruguaios. De outro lado, são moradores de Jaguarão
que detêm cerca de 40% da produção uruguaia de arroz.
Jaguarão está onde antigamente havia a Guarda da Lagoa e do Cerrito,
constituída em 1791 pela Coroa Espanhola, já que as terras do lado de cá do rio
Jaguarão estavam dentro de seus domínios. Por isso, dos pouco mais de 200 anos
da cidade uruguaia de Rio Branco (separada por um riacho de Jaguarão), dez
foram passados em território brasileiro. O ano que marca o início oficial do
povoamento de Jaguarão é 1801.
A posse da terra nessa faixa da fronteira sempre foi muito conturbada. Os
problemas começaram quando Portugal conquistou a Colônia de Sacramento em 1680.
Nessa época, todo o Rio Grande do Sul, onde floresciam as reduções jesuíticas,
era espanhol. Para apoiar os conflitos permanentes pela posse da Colônia - que
trocou de mãos inúmeras vezes -, Portugal criou um núcleo de povoamento em Rio
Grande no ano de 1737. De 1763 a 1776 os espanhóis, procurando recuperar
terreno perdido, ocuparam Rio Grande.
Em 1817 o governo português incorporou todo o atual Uruguai, dando-lhe o nome
de Província Cisplatina, o que somente durou até 1828, quando os uruguaios
garantiram sua independência. Os conflitos de terra na região, porém, ainda
perduram, embora sem maiores problemas diplomáticos - reclamando de uma medição
feita em 1856, os uruguaios alegam que uma área de 22 mil hectares que está em
território brasileiro (onde foi fundada a Vila Thomaz Albornoz, em Livramento)
na verdade lhes pertence.
Das
degolas à integração
Todavia, não existem mais conflitos.
Poucas pessoas ainda sabem que as califórnias da canção, realizadas anualmente
em Uruguaiana para cultuar as tradições musicais do estado, derivam de algo não
tão pacífico - antigamente, califórnias eram as expedições punitivas que
comandantes brasileiros faziam em território uruguaio contra abusos praticados
contra brasileiros que lá moravam.
Antigamente, quem não conseguia dizer "pauzito" pronunciando o
"z" era degolado, já que o castelhano dá a pronúncia do "c"
em lugar do "z". Hoje os gaúchos casam com os castelhanos e as
cidades fronteiriças são quase uma única comunidade.
De tão pacífica que é a fronteira, velhos aposentados que não têm onde morar e
que passaram a vida trabalhando como peões nas estâncias, preenchem seus dias
vagando entre uma fazenda e outra nos dois lados, sendo abrigados e alimentados
gratuitamente com base numa lei não escrita dos pampas.
Nas cidades, a colaboração é ainda mais ampla: em Livramento, por exemplo, as
redes de água e energia são interligadas com as de Rivera, para que uma cidade
socorra a outra em caso de necessidade. Quando se tratar de um assassinato,
também está convencionado que a investigação e o inquérito correrão na
repartição do país onde for encontrado o corpo.
Fonte:
http://www.riogrande.com.br/historia/colonizacao9.htm
Acesso em 20/08/2012